24/11/2014 - 07:42
Será a eleição do novo líder do PS e candidato a primeiro-ministro uma
vitória sobre uma barreira de racismo? Especialistas dizem que não. Trata-se de
um descendente de goeses brâmanes católicos, os portugueses da Índia.
Corria o
ano de 1976, Maria Antónia Palla foi buscar o filho António Costa à escola.
Raramente o fazia, mas naquele dia chegou à porta da Escola Fernão Lopes, já
instalada no Palácio dos Condes de Cabral, no Largo António de Sousa Macedo, em
Lisboa, e perguntou pelo filho a um contínuo. Depois de alguma insistência, o
homem lá percebeu quem era a criança cuja mãe ali se apresentava e soltou a
frase: “Ah, é o preto!”
Maria Antónia fica pasmada. Mas também muitíssimo
preocupada. À noite, já em casa com o filho, decide falar-lhe sobre o que via
como um problema: a hipótese de o seu filho ser vítima de racismo. Com cuidado
redobrado, pergunta ao rapaz como é que o tratam na escola. Ele responde
pronto: “António!” Ela insiste: Ele acrescenta o apelido e diz que também o
tratam por António Costa. Como a conversa não evoluía, Maria António Palla
relata ao filho o sucedido à porta da escola e a reacção do contínuo.
Tranquilo, António Costa pergunta-lhe: “Ó mãe, tu já olhaste para mim? Já viste
a minha cor? Eu sou escuro mesmo.”
António Costa nasceu em Lisboa a 17 de Julho de 1961,
filho da jornalista Maria Antónia Palla e do escritor Orlando da Costa. E se
Maria Antónia era de uma família portuguesa, republicana e laica do Seixal,
Orlando era filho de uma família goesa, brâmane e católica de Margão, território
que foi integrado na Índia em 1961, com a anexação das possessões
portuguesas Goa, Damão e Diu. Filho de uma portuguesa da metrópole, branca, e
de um goês de Margão, indiano portanto, António Costa herdou características
fenotípicas do pai, ou seja, a cor da sua pele é castanha, como é próprio das
populações da Índia.
“Nunca me limitou”
Hoje, como na sua adolescência, António Costa vive bem com a cor da sua pele.
Ao PÚBLICO afirma: “A cor da pele nunca me limitou, nunca.” Perante a pergunta
sobre se alguma vez se sentiu discriminado, vítima de racismo, garante: “Eu,
pessoalmente, nunca senti. Posso ter ouvido uma ou outra vez chamarem-me
'monhé', mas é episódico.” E explica que a cor da pele sempre foi vivida
por si “com normalidade” e sem se sentir diferente ou especial por isso:
“Também não era motivo de orgulho.”
O candidato a primeiro-ministro diz mesmo que só agora
surgiu “um grande interesse dos jornalistas sobre isso”, o que atribui ao facto
de a sua vitória nas primárias ter sido noticiada em jornais indianos como o Hindustan Times(29/09/2014) e
o Economic Times (30/09/2014), que salientaram o
facto de, pela primeira-vez, um candidato a primeiro-ministro no Ocidente ser
de origem indiana.
“Na Índia o assunto é notícia porque há actualmente uma
nova atitude em relação aos goeses”, explica António Costa. “Há uma coisa nova,
os indianos têm uma relação mais descomplexada com os goeses e Goa já tem
governos hindus.” E sublinha que há um novo interesse “sobretudo em relação aos
goeses que tinham vindo para Portugal, que eram mal vistos, havia uma barreira
contra os goeses em geral, porque consideravam que eles estavam feitos com os
colonialistas”.
O secretário-geral do PS considera mesmo que a sua
ascensão a este cargo e a sua escolha em eleições primárias como candidato a
primeiro-ministro nada têm que ver com a quebra de uma barreira contra o
racismo na política portuguesa. Esta posição de Costa é confirmada ao PÚBLICO
pelo antropólogo goês e investigador do Centro de Estudos Internacionais do
ISCTE, Jason Keith Fernandes. “A vitória de António Costa não significa que não
há racismo”, afirma este investigador. E lembra: “Os ingleses quase
‘inventaram’ o racismo, mas estavam na Índia com o seu império e tratavam os
filhos dos rajás como brancos, estes estudavam em Oxford, como os filhos da
elite inglesa, eram completamente ingleses. Em qualquer império as elites dos
territórios são tratadas como as elites do centro.”
Jason Keith Fernandes afirma que “para perceber o racismo
é preciso analisar como são tratados os goeses de classes baixas, onde as
pessoas não têm poder, não são especiais”. O facto de um filho de um goês de
elite ser candidato a primeiro-ministro não altera nada em relação ao racismo
quer seja na política, quer seja na sociedade em geral. E avança com um
exemplo: “A Índia teve uma mulher primeira-ministra, Indira Gandhi, e isso nada
indica sobre o estatuto da mulher na Índia.”
Pelo contrário, este investigador defende que só a
existência da dúvida sobre se há diferença em Costa já mostra que o racismo
permanece. “Conta-se a história de uma senhora goesa que se ofendeu porque num
restaurante de Lisboa ouviu comentar que ela comia como os portugueses e falava
como os portugueses”, conta Janson Keith Fernandes. E conclui: “Ela
ofendeu-se por terem duvidado. O espanto vem da dúvida de que possa ser
verdade. O dilema é esse, a dúvida mostra que não estamos num espaço sem
racismo. Estamos todos marcados pelo racismo. Basta o facto de dizermos que não
somos racistas para já estarmos a levantar o problema. Há racismo e o que há a
fazer é falarmos disso.”
ler mais em: http://www.publico.pt/politica/noticia/antonio-costapolitico-para-alem-da-cor-da-pele-1677000
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